Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento na etnografia e na educação

STREET, Brian. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. São Paulo: Parábola Editorial, 2014. 240 p.

  1. CREDENCIAIS DO AUTOR

Brian Vincent Street é professor emérito do King’s College London e professor visitante da Universidade da Pensylvania. Faz pesquisas sobre letramento nas vertentes teórica e aplicada. Lecionou antropologia cultural na Universidade de Soussex e tem orientado doutorados e oferecido seminários em etnografia, escrita acadêmica em nível superior, linguagem e letramento. Fomenta projetos de desenvolvimento no sul da Ásia e na África aplicando a perspectiva etnográfica à formação de professores de letramento e de numeramento em um programa conhecido como LETTER. Street tem trabalhado com colegas brasileiros, com foco nas perspectivas etnográfica e acadêmica do letramento.

  1. RESUMO DA OBRA

Esta obra apresenta abordagens críticas do letramento em relação ao seu desenvolvimento, na etnografia e na educação. Apesar de lançada originalmente na Inglaterra em 1995, foi traduzida para o português e lançada no Brasil em sua primeira edição no ano de 2014, enriquecendo, no cenário acadêmico nacional, as discussões sobre o letramento como prática social e o caráter múltiplo das práticas letradas.

Trazendo novos horizontes ao convocar o leitor para compreender de forma crítica os múltiplos letramentos, o livro é dividido em cinco seções, são elas: Seção 1 – Letramento, política e mudança social, com dois capítulos, o primeiro: Trazer os letramentos para a agenda política, o segundo: Letramento e mudança social: a importância do contexto social no desenvolvimento do programa de letramento. Seção 2 – A etnografia do letramento, com dois capítulos, o primeiro: Os usos do letramento e da antropologia no Irã, o segundo: Oralidade e letramento como construtos ideológicos. Seção 3 – O letramento na educação, também com dois capítulos, o primeiro: A escolarização do letramento, o segundo: Implicações dos novos estudos do letramento para a pedagogia. Seção 4 – Para um quadro teórico crítico, com dois capítulos, o primeiro: Olhar crítico sobre Walter Ong e a “grande divisão”, o segundo: Práticas letradas e mitos do letramento. A quinta e última seção é denominada de Relações entre política, teoria e pesquisa no campo do letramento. Esta tem apenas um capítulo, denominado de Relações entre política, teoria e pesquisa no campo do letramento. Ressalta-se que, cada seção, inicia com introdução específica.

Dentre as discussões levantadas na obra, o autor critica fortemente a concepção, ainda hoje dominante, que reduz o letramento a um conjunto de capacidades cognitivas passíveis de medição em um sujeito. A esse modelo influenciado numericamente pela necessidade, muitas vezes infundada, de quantificar tudo ao nosso redor como se assim fosse possível, o autor denominou de “modelo autônomo”, em que as instituições, os textos e os sujeitos são tratados de igual forma independente do contexto social.

Em contraponto ao “modelo autônomo” o autor propõe o “modelo ideológico” em que as práticas letradas são frutos da cultura, da história, das relações de poder e dos discursos ideológicos sobre “letramento”. Neste modelo, o foco não fica restrito à aquisição de competências, mas transborda para o pensar sobre o letramento como uma prática social, trazendo, como consequência, o reconhecimento dos múltiplos letramentos que variam de acordo com o tempo e o espaço. Enquanto na abordagem autônoma, busca-se impor concepções ocidentais de letramento para outras culturas, na abordagem ideológica, pressupõe-se que existem diferentes letramentos em diferentes condições.

A leitura proporciona ainda reflexões num momento político em que o país sofre forte influência, inclusive internacional, para a consolidação de políticas públicas de avaliação da compreensão leitora, da aquisição de materiais didáticos em larga escala e de investimentos públicos para a formação de professores alfabetizadores. A seguir será feito um resumo dos capítulos do livro com os seus principais pontos de discussão.

Seção 1- Letramento, política e mudança social

No primeiro capítulo denominado “Trazer os letramentos para a agenda política”, Street mostra que há um interesse das agências internacionais em divulgar dados alarmantes do analfabetismo, já que essa prática traz investimentos, retificando que as taxas de analfabetismo é uma questão política que movimenta recursos financeiros. No entanto, há evidências que esse quadro instala-se e é apresentado de forma exagerada para que campanhas e financiamentos vultosos sejam implementados. Dessa forma, o problema do analfabetismo deixa de ser somente da seara de educação e da política e reverbera para fins econômicos e financeiros, podendo interferir, de forma negativa, em políticas públicas educacionais sérias. Nesse contexto, para valorizar a necessidade dessas campanhas, analfabetos adultos são considerados inferiores, o que faz eclodir a teoria da “grande divisão” entre letrados e “iletrados”. Essa perspectiva permeará em quase todo o livro.

Street denuncia que o número de emprego não cresce de forma proporcional ao número de alfabetizados. Essa perspectiva dá vazão ao pensamento que existe um “mascaramento” em relação a problemas políticos concernentes à empregabilidade e que a causa principal não é o letramento, mas sim problemas relacionados à origem étnica e de gênero. Corroborando essa ideia, alguns empregos exigem letramento mínimo, ou habilidades letradas diferentes das ensinadas como práticas nas escolas formais. Além disso, em alguns casos, os funcionários podem aprender no próprio emprego.

No livro, emerge a ideia que adultos considerados analfabetos, ao participarem de programas de alfabetização, percebem que conseguem ler e escrever, o que caracteriza a existência de níveis de analfabetismo. Assim, Street afirma que o estigma do analfabetismo é um fardo maior do que problemas com leitura e com a escrita.

Street denuncia a ideia da superioridade do letramento ocidental em detrimento do letramento local. Exemplifica com o caso dos islâmicos que se pautam na leitura e na escrita associadas a textos religiosos e atividades eruditas e comerciais. Ainda sobre a afirmação da adoção do letramento ocidental em países de outros continentes, Street traz o exemplo de Paulo Freire, professor e pesquisador brasileiro, considerado como um dos maiores alfabetizadores desse país. Mas, será mesmo que Paulo Freire sucumbiu ao ocidentalismo, desprezando, dessa forma, a cultura local dos seus educandos?

No tocante à “grande divisão” entre letrados e “iletrados” a ideia fundante baseia-se na salvação dos iletrados adultos com o letramento. Seria a redenção para eles, porque todos os problemas econômicos e sociais seriam resolvidos. É como se todos os saberes oriundos da vida pregressa dos adultos iletrados fossem ignorados, em função da supremacia da cultura letrada. Ressalta-se que essa ideia não está fincada somente em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, mas também em países desenvolvidos.

Mas será mesmo que os iletrados são seres sem luz, apáticos ou mesmo não têm senso crítico e reflexivo? Sabemos que não, porque coadunamos com a concepção freireana de que todo ser humano tem saberes adquiridos em sua vida pregressa. Nesse sentido, tomemos como exemplo parte do filme Central do Brasil, em que a personagem Dora ouve histórias de pessoas em uma feira. Ao fazerem isso, essas pessoas se apropriam da cultura letrada, pois narram histórias, emitem juízo de valor, fazem críticas, ironizam etc (GONÇALVES, 2016).

Street afirma que o letramento per se, ou seja, em si mesmo, não resolverá os problemas de um povo. O letramento, ou melhor, letramentos, devem considerar, sobretudo, os aspectos culturais, sociais, econômicos etc, de uma comunidade. Assim, os letramentos devem ser inseridos em variedades de contextos. Dessa forma, fica clara a ideia que os povos locais têm seus próprios letramentos, suas habilidades e convenções de linguagem e suas próprias maneiras de apreender os novos letramentos fornecidos. No entanto, na obra em questão, fica óbvio que os povos dominantes desprezam essa perspectiva.

Por fim, deve-se trazer para as agendas públicas políticas públicas de alfabetização e letramento que respeitem as diferenças e aspectos culturais, sociais e econômicos dos povos na sociedade contemporânea.

No capítulo 2, denominado “Letramento e mudança social: a importância do contexto social no desenvolvimento de programas de letramento”, Street afirma que as campanhas de letramento têm caráter dominador de colonialismo como o caso na Inglaterra (o poder, a autoridade). Para tanto, o autor deixa claro que o povo dominado sofre mudanças significativas no seu modo de pensar e agir, isso porque o letramento de um povo para o outro não se encerra na codificação e decodificação textual, mas, sobretudo, na mudança nos aspectos culturais e ideológicos. Assim, não é uma mudança puramente técnica. Como exemplo, tem a datação de documentos por tabeliões. Essa ação, aparentemente simples, implicava na mudança de hábito do povo inglês, porque com esse ato as correspondências poderiam ser separadas por data; bem como poderiam ser encontradas pela sequência de data. Ações como essas influenciam, sobremaneira, na identidade de um povo.

 Em Madagascar, como em diversas sociedades não europeias, o letramento em massa se deu a partir da evangelização pelos missionários. Com a expulsão dos missionários de Londres, como eram denominados, esse tipo de letramento não se extinguiu, pelo contrário, se expandiu em repartições administrativas na produção de manuscritos históricos e etnográficos.

Street ressalta que tanto em Madagascar quanto na Inglaterra Medieval, o letramento colonial foi introduzido como parte de um processo amplo de colonização. Porém, isso não impediu que esses dois povos deixassem de praticar letramentos nativos.

 Vale ressaltar que Street rejeita a teoria de que pessoas alfabetizadas apresentam capacidades diferentes das não alfabetizadas, defende que essas últimas podem ser igualmente críticas e autoconscientes.

Street denuncia o letramento dominante. Esse se constitui pelos países de origem ocidental que ao colonizar países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento transferem costumes e culturas para os países dominados. Dessa forma, percebe-se que formas de industrialização, burocracia em repartições, escolarização formal, entre outros são incorporados a culturas locais.

No Irã, percebe-se que a educação se consolida em casa com as mães, mas pelas condições de saúde e higiene das famílias o processo se tornava difícil. Além disso, as mães eram permissivas e não apresentam a formação ideal para consolidar a educação. Segundo Hashemi apud Street (2014, p. 54) “A educação das mulheres, portanto, é fundamental para a educação e o desenvolvimento”. Dessa forma, o papel do professor nas aldeias iranianas era suscitar mudanças na educação das mulheres para que os filhos delas pudessem ser educados também.

O autor conclui que os “letramentos locais” são muito importantes para serem acomodados por serem considerados inferiores, já que o letramento é parte prática ideológica e não pode ser subjugado ao “modelo autônomo”.

Seção 2 – A etnografia do letramento

No capítulo 3, denominado “Os usos do letramento e da antropologia no Irã”, Street se propõe a aplicar à compreensão de práticas letradas em aldeias iranianas, local onde desenvolveu seu trabalho de campo, alguns princípios do livro The uses of Literacy (1957), de Richard Hoggart. Numa tentativa de fazer um elo transcultural, analisa quais aspectos da experiência britânica e tradição crítica sugerida por Hoggart podem ser aplicados com aproveitamento em contexto cultural diferenciado, porém com processos semelhantes. Descreve o crescimento do sistema educacional moderno no Irã, as ideias por trás do seu desenvolvimento associada a situação nas aldeias em que desenvolveu o trabalho de campo nos anos 1970.

Nesse sentido, Street mostra que o sistema de educação formal implantado Irã, era algo isolado, já que a maioria da população não tinha outros livros em casa, além do Alcorão (utilizado anteriormente) pelos Aldeões, além de desprestigiar as tradições orais, muito comum na presente sociedade. Então a leitura e a escrita eram vistas como uma obrigação. Sendo assim, o letramento moderno no Irã não só não estimulou a criatividade, como também enfraqueceu a tradição oral.

Anteriormente à instalação do novo modelo de educação estatal, os aldeões estavam habituados com as maktabs, nome dado às escolas locais, que tinham grupos de leitura do Alcorão. As pessoas se reuniam nas casas para a leitura do Alcorão e suas passagens serviam como base para discussão e interpretação. Com a implantação do novo modelo, surge o desprestígio das tradicionais orais, uma vez que os livros didáticos adotados atrelavam as tradições ao primitivismo a um suposto “atraso”. Nessa perspectiva, Street, ao destacar que as práticas letradas escolares implantadas no Irã estavam dissociadas do seu contexto diário, mostra o desfavorecimento de uma visão crítica em detrimento do “consumo acrítico”, já que tipos de sensibilidade e ceticismo característicos da tradição oral estariam enfraquecidos por esse processo (STREET, 2014, p.81).  Põe em questão o mito de que o letramento é sinônimo de progresso, desenvolvimento intelectual e cognitivo de uma sociedade.

No capítulo 4, “Oralidade e letramento como construtos ideológicos: alguns problemas em estudos transculturais”, Street apresenta relato de missionários ocidentais que demonstram como práticas letradas disseminadas na colonização europeia estavam envolvidas na mistificação, no estabelecimento de hierarquia e de poder político e numa difusão restrita da escrita. A ideologia propagada por meio dessas práticas era a do colonizador, com consequências para o controle político dos povos. Difundido como equivalente de riqueza e poder, o letramento era utilizado para conversão e controle social e se prestava à manutenção da servidão dos colonizados. Ler era sinônimo de familiarização com o pensamento cristão e o ensino de práticas letradas era revestido de objetivos disciplinares. Ou seja, são letramentos restritos que não alcançaram sua plenitude por conta de obstáculos como a religião e o controle.

Seção 3 – O letramento na educação

No capítulo 5, denominado “A escolarização do letramento”, o autor deixa claro que é essa pesquisa fruto de uma análise dele junto a Joanna Street, dessa forma se refere a ele pelo pronome NÓS. Nessa seção eles têm como objetivo mostrar como uma variedade em particular foi considerada como única, marginalizando e descartando as demais. Havendo uma, “pedagogização” do letramento o qual não se restringe, porém, à escola: outros setores da sociedade também compartilham dessa visão autônoma. Para isso, Brian e Joanna analisaram turmas do 1º ao 5º ano em uma escola dos Estados Unidos e comprovaram como a língua é tratada pelos professores como algo externo, sem relação social, assumindo um caráter ritual e não semântico, observando a gramática e o léxico com alunos receptores e não ativos. Enquanto na escola haveria rotulação de espaços e procedimentos para o uso da língua – ações que a “objetificam” –, pais e professores reafirmariam relações de hierarquia, controle e autoridade. A família também encontra voz nos jornais, brinquedos educativos, debates, debates políticos. Street observa que a autoridade é cultuada em ambos os espaços. Em que a aprendizagem está transformando uma rica variedade de práticas letradas em uma prática única.

Com isso há uma percepção que a fonte é muito mais ampla que a escola e deriva de correntes culturais e ideológicas. Em que mães e filhos em casa adotam o papel de professora e aluno. Os autores mostram que a fonte da PEDAGOGIZAÇÃO vai além chegando às concepções de nacionalismo, nação e identidade nacional. A partir disso, Street estimula que sejam feitas pesquisas sobre letramento e a relação com o nacionalismo.

No capítulo 6, denominado “Implicações dos novos estudos do letramento para a pedagogia”, Street recorre aos Novos Estudos de Letramento, levantando pontos relevantes e dificuldades conceituais que seriam provenientes de diferentes filosofias educacionais, a exemplo do método global, dos multiletramentos, da proposta de Paulo Freire, da abordagem por gêneros, dentre outros. No que se refere ao “método Paulo Freire”, faz críticas a abordagem quase que exclusivamente silábica, pois o mesmo não se preocupava com hábitos de leitura e processos de escrita dos estudantes.

O capítulo ainda traz a equívoca relação entre a aquisição de gêneros do poder e o empoderamento dos jovens, já que fatores étnicos e políticos influenciam bastante. Para Brian e Joanna levar os alunos a acreditar que existe uma relação de mão única entre gêneros ensinados na escola e aquisições de poder é prepará-los para a frustração e a desilusão. Com isso, o autor acredita que para facilitar o processo é preciso contar com professores habilidosos que poderão introduzir a consciência linguística crítica e do letramento como prática social em sala de aula.

Seção 4 – Para um quadro teórico crítico

No capítulo 7 denominado “Olhar crítico sobre Walter Ong e a grande divisão”, o autor faz uma análise crítica, dura cabe aqui ressaltar, ao trabalho de Walter J. Ong. (cf. Ong, 1982), que defende a “grande divisão” entre oralidade e letramento. Encaramos esse olhar crítico, assim como o realizado em menor escala nos capítulos 1 e 6 ao tensionar a discussão acerca dos postulados de Paulo Freire, salutar para a quebra de paradigmas ao trazer para a academia discussões e novos pontos de vista para questões, às vezes, não contestadas e enraizadas no senso comum. São essas discussões responsáveis por tirar o leitor da sua “zona de conforto” e trazer o desafio do pensar uma situação sobre uma ótica completamente diferente do anteriormente preconizado.

O olhar crítico de Street vai completamente de encontro a tudo defendido por Ong. Ele afirma que é preciso confrontar suas teses, testar a validade dos seus postulados confrontando-os com novas pesquisas e o mais importante: indagar porque as suas ideias ainda são tão poderosas nos dias atuais, principalmente nos Estados Unidos.

Street utiliza-se do pensamento de Ong (1982) – quando este afirma que o letramento “permite”, “facilita”, “promove” a mudança da mentalidade “pré-lógica” para uma “lógica”, a partir de onde floresce a ciência, a objetividade, o pensamento crítico e a abstração – para defender que esse pensamento fundamenta as alegações da suposta superioridade ocidental. Segundo Street, ainda que existam análises linguísticas nessa exposição, elas são política e ideologicamente “montadas” de forma a definir e moldar o próprio mundo segundo interesses outros. Ele duramente afirma que “É por esse motivo, mais do que pelo interesse ‘acadêmico’ das análises que é importante prestar atenção ao trabalho de Ong em profundidade. Na superfície, já é provável que ele se sustente em pressupostos “folclóricos” sobre letramento” (STREET, 2014, p. 165, grifo nosso). Essa leitura nos traz implicitamente o questionamento, por parte do autor, aos interesses políticos e financeiros dos postulados de Ong.

Metodologicamente, Street afirma que Ong tem afinidades com a metodologia oitocentista da antropologia social em que o observador se coloca na posição do sujeito observado. O problema surge quando o conservador desconhece por completo a cultura e o contexto dos sujeitos que estão sendo representados no momento – e aí vem a dura crítica de Street quando afirma que: “No caso de Ong, ele não só nada sabe sobre a rica variedade de diferentes culturas que reúne sob o rótulo de ‘orais’, como também, segundo seu próprio argumento, jamais poderá saber nada delas, já que ele mesmo procede de uma cultura ‘letrada’”. (STREET, 2014, p. 165, grifo nosso).

Ainda no aspecto metodológico, Street afirma que o pior erro de Ong é querer usar as culturas orais dos dias atuais – se é que podem ser encontradas, pois Street defende que existem muito poucas assim no mundo, já que a grande maioria possui contato, ainda que mínimo, com várias formas de letramento como etiquetas, placas em ruas, etc – para comprovar a natureza de sociedades passadas, pois segundo a moderna antropologia social esse modelo unilinear não se sustenta uma vez que  as sociedades contemporâneas já não podem ser mais consideradas como comprovações do passado.

No que tange aos aspectos teóricos defendidos por Ong, a grande divisão entre oralidade e letramento é posta em xeque com o exemplo simples de uma palestra ou um seminário realizado na academia. Nessas situações, configurando a mescla entre o discurso oral e o letrado, existe o letramento quando os ouvintes fazem as anotações.

Street conclui o capítulo duramente afirmando que “a tese de Ong, portanto, parece ser de pouco valor na investigação da relação entre oralidade e letramento” (STREET, 2014, p. 169, grifo nosso) e que no intuito de investigar a relação entre oralidade e letramento “a tese de Ong não é de grande ajuda e, de fato, é mais provável que extravie o pesquisador incauto” (STREET, 2014, p. 169, grifo nosso).

No capítulo 8, intitulado “Práticas letradas e mitos de letramento”, o autor traz algumas obras como referências para aqueles que se aventuram nos estudos assumindo uma perspectiva ideológica do letramento.

Street alerta para o fato de que em muitas obras que sugerem mescla e contextualização entre oralidade e letramento, os pressupostos teóricos de “contínuo” – onde letramento e oralidade estão imbricados – são mais retóricos do que reais, pouco se diferindo do clássico conceito de “grande divisão”.

Aborda também o senso comum de que os estudiosos que adotam a visão “ideológica” de letramento em oposição à “autônoma” não dão importância aos aspectos técnicos da leitura e da escrita – como decodificação e “dificuldades” de leitura, por exemplo – e afirma que esses aspectos técnicos são também fundantes na visão “ideológica”, porém sempre contextualizados em práticas sociais.

Por fim, alguns “mitos do letramento” são discutidos ao longo do capítulo. Sobre a noção de que o discurso escrito é mais conectado e coeso, enquanto que o oral é fragmentário e desconexo, ele defende que a coesão não deve ser critério primordial para distinguir linguagem oral de escrita e que esse sentimento é um mito herdado do método linguístico tradicional de decodificar componentes separados de um enunciado – o que gerou um estudo da língua oral formado por fragmentos separados.

Outro mito reza que a língua escrita entrega seu significado diretamente, enquanto a língua oral é mais susceptível às pressões imediatas da comunicação face a face. Street contesta esse mito, trazendo um trabalho de Heath (1983) que empregou uma abordagem etnográfica para provar que tanto a linguagem escrita quanto a oral servem para uma situação de comunicação face a face.

Para concluir, o autor afirma que a noção da “grande divisão” infelizmente ainda persiste em muitos trabalhos, mas que o letramento não pode mais ser separado da oralidade, por qualquer que seja o motivo.

Seção 5 – Relações entre políticas, teoria e pesquisa de campo do letramento

No capítulo 9, intitulado “Relações entre políticas, teoria e pesquisa no campo do letramento”, Street considera relevante reunir políticas, teoria e pesquisa com perspectivas “etnográficas”. No capítulo 9 dessa seção Street cita relatórios em que agências internacionais continuam ignorando o ponto de vista etnográfico, tendo um olhar isolado e padronizado das crianças, sem considerar a diversidade de culturas, crenças e práticas. Ao trazer alguns trabalhos sobre aprendizagem, incluídos os de brasileiros, o autor ratifica concepção de letramento como prática social. E com isso ele recomenda que o letramento parta do letramento familiar, em vez de negá-lo ou depreciá-lo, o que resultaria em melhoras no desempenho escolar e na sociedade em geral.

Street conclui o capítulo validando a metodologia abordada em toda a discussão dos capítulos anteriores, que a adoção da perspectiva etnográfica terá um impacto considerável se os participantes de programas de letramento puderem ser ajudados a “se apoderar” dessas práticas relevantes para seu contexto.

REFERÊNCIAS

GONÇALVES, Paulo César da Silva. Letramentos Digitais: contribuições para potencializar a aprendizagem em leitura e escrita na EJA. Departamento de Educação. Campus I. Universidade do Estado da Bahia (UNEB), 2016.

HEATH, S. B. Ways With Words. Cambridge University Press. 1982.

ONG, Walter J. Literacy and Orality: The Technologizing of the Word. Nova York/Londres: Methuen, 1982.

STREET, Brian. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. São Paulo: Parábola Editorial, 2014. 240 p.

Discentes/autores(as): Paulo César da Silva Gonçalves

                                       Raqueline de Almeida Couto

                                     Simone Carvalho de Santana

                                    Tarsio Ribeiro Cavalcante

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